Artista, punk, outsider e cronista das margens. Assim pode ser definido Fernando Carpaneda, um dos nomes mais provocadores e autênticos da arte contemporânea brasileira. Nascido em Brasília, Carpaneda construiu uma carreira internacional abordando, sem filtros, temas como a cultura punk, a sexualidade, a marginalidade urbana e a diversidade humana. Seu trabalho — que transita entre a pintura, a escultura e a instalação — carrega uma energia crua e visceral, capaz de confrontar o olhar do público e de criar pontes entre universos muitas vezes invisibilizados.
Nesta entrevista, Fernando fala sobre suas raízes no movimento underground de Brasília, sua convivência com figuras icônicas da cena punk e gótica, o uso de materiais inusitados em suas obras, sua trajetória em palcos internacionais como o CBGB e o Museu Leslie Lohman, e a maneira como sua arte continua sendo uma ferramenta de resistência e transformação. Em cada resposta, fica evidente: mais do que representar corpos, ele documenta almas.
Prepare-se para mergulhar em um universo onde a arte é, acima de tudo, um manifesto vivo.

Início da Carreira: Como você descobriu sua paixão pela escultura e pela pintura? Quais foram suas principais influências no início de sua trajetória artística?
Desde muito cedo, eu sentia uma necessidade intensa de me expressar visualmente. Era adolescente no início do movimento do Rock Brasília e, consequentemente, me tornei punk naquela época. Conheci Renato Russo ainda na fase do Aborto Elétrico e participei da II Faculta — Feira de Arte e Cultura de Taguatinga, em 1983, um evento que reunia bandas de rock e artes plásticas. Comecei a pintar aos 10 anos e, pouco depois, a escultura entrou na minha vida como uma extensão natural dessa vontade de dar forma ao que eu sentia e via ao meu redor. Minhas primeiras influências foram artistas como Hans Bellmer, com sua abordagem visceral do corpo humano, e o universo das subculturas urbanas, principalmente o punk rock. A rebeldia, a crítica social e a liberdade de expressão sempre me atraíram.
Temáticas das Obras: Suas obras frequentemente retratam temas como a cultura punk, homoerotismo e questões sociais. O que o levou a escolher esses temas e como você os desenvolve em seu trabalho?
A cultura punk, o homoerotismo e as questões sociais estão profundamente entrelaçados com minha vivência pessoal e artística. Cresci cercado por tabus, preconceitos e exclusões, então meu trabalho é uma resposta a isso — um ato de resistência e afirmação. Escolhi esses temas porque acredito na arte como uma ferramenta de diálogo e transformação. Busco representar corpos reais, com marcas, histórias e identidade — principalmente aqueles marginalizados pela sociedade.
Processo Criativo: Você utiliza materiais inusitados, como bitucas de cigarro e preservativos, em suas esculturas. Poderia nos contar mais sobre seu processo criativo e a escolha desses materiais?
Meu processo é visceral e instintivo. Trabalho com modelos vivos, faço esboços e uso fotografias como apoio, mas a criação ganha vida no ateliê, no silêncio entre eu e o material. Gosto de usar elementos inusitados como bitucas de cigarro, preservativos usados, cabelo humano e roupas reais. Esses objetos carregam memórias, vivências e vestígios humanos — tornam a obra mais crua e verdadeira. Uso esses materiais como base ou partes de algumas esculturas. São fragmentos do cotidiano que revelam tanto quanto uma pincelada.
Experiências Internacionais: Tendo participado de exposições em locais renomados, como o CBGB e o Museu Leslie Lohman de Arte, como essas experiências internacionais influenciaram sua arte?
Tive a honra de expor em lugares icônicos como a galeria do CBGB e o Leslie Lohman Museum of Art, nos Estados Unidos. O CBGB teve um papel fundamental na minha carreira internacional — foi o primeiro espaço nos Estados Unidos a acreditar no meu trabalho. Participei de uma exposição ao lado de Dee Dee Ramone e, nesse contexto, acabei me tornando amigo de Arturo Vega, artista visual, produtor dos Ramones e criador do famoso logo que estampou os discos e camisetas da banda. Essas experiências abriram novas perspectivas sobre o impacto da arte em diferentes contextos culturais. Uma das conquistas mais marcantes da minha trajetória foi ter uma obra vendida na casa de leilões Sotheby’s, em Nova York — um reconhecimento que ampliou significativamente minha visibilidade fora do Brasil. Ao longo do meu percurso, também tive a oportunidade de conhecer figuras importantes da cultura pop e punk, como a atriz Brooke Shields, a cantora Debbie Harry (do Blondie), o fotógrafo Billy Name — que integrou a Factory de Andy Warhol — e Jake Kolatis, vocalista da banda punk The Casualties. Cada encontro foi uma fonte de inspiração e reafirmou minha convicção de que a arte conecta mundos e gerações.
Cultura Gótica e Punk de Brasília: Sua relação com a cena gótica e punk de Brasília é marcante, inclusive você retratou algumas figuras importantes da nossa cena.O quanto essa convivência e essa atmosfera alternativa influenciaram o seu trabalho artístico?
Viver a cena punk e gótica de Brasília foi como receber uma tatuagem na alma — uma marca que nunca vai sair. Eu não observava de fora; eu estava no meio daquilo, sentindo na pele. Cada show em galpão abandonado, cada amigo que se expressava sem medo, cada confronto com o preconceito, tudo isso alimentou minha visão de mundo. Brasília, com toda sua rigidez política, criou uma geração que explodia criatividade no submundo. Essa atmosfera alternativa, intensa e autêntica, me formou como artista. Ela me ensinou que arte é resistência, que beleza pode nascer do caos, que a marginalidade também é poesia. Cada rosto que retrato, cada traço que coloco na tela, carrega essa história viva. Não faço arte para ser aceito — faço arte porque é a única forma verdadeira de manter essa chama acesa. A cultura alternativa de Brasília não só me influenciou — ela me definiu.
Percepção do Público: Como o público brasileiro e o internacional reagem às suas obras? Você percebe diferenças significativas nessas recepções?
O público brasileiro e o internacional reagem de formas bastante distintas. No Brasil, percebo uma resistência maior quando a temática envolve homoerotismo ou crítica social. Sinto também que nem todo curador tem o conhecimento ou a vivência necessária para compreender plenamente meu trabalho, que é profundamente enraizado na subcultura punk e no universo underground. Acredito que, para entender certos detalhes e discursos presentes na minha obra — como os títulos das peças, as frases escritas nos quadros e as referências a bandas góticas e punks — é preciso ter vivido, de alguma forma, uma experiência alternativa, ter estado nas ruas, próximo da cena punk. Sem essa vivência, falta alma e sensibilidade para captar a essência do que estou dizendo. Minha história com o punk é tão profunda que sinto como se tivesse uma marca cravada na alma — algo que não se apaga, não importa a fase da vida ou a aparência exterior. É como se eu tivesse recebido a marca do 666 na alma (risos). Já em outros países, especialmente nos Estados Unidos e na Europa, percebo uma receptividade mais aberta. Talvez porque o movimento punk tenha surgido lá, existe um interesse maior em entender o discurso por trás da obra. De qualquer forma, a arte que provoca e questiona sempre gera algum incômodo — e, para mim, isso é algo extremamente positivo.
Desafios na Carreira: Quais foram os maiores desafios que você enfrentou ao longo de sua carreira artística, especialmente ao abordar temas considerados tabus?
Falar sobre sexualidade, identidade e marginalização sempre foi um desafio. Sofri censura, exclusão de espaços institucionais e críticas duras. Mas nunca me calei. Outro grande obstáculo foi transformar minha arte em sustento financeiro. Meu trabalho não é comercial no sentido tradicional — ele incomoda, e muitas vezes o mercado busca o contrário: algo decorativo, fácil de digerir, como design de interiores.
Evolução Artística: Como você enxerga a evolução do seu trabalho desde o início até os dias atuais? Há alguma fase ou obra que considere mais marcante?
Minha arte amadureceu muito ao longo dos anos. No início, era mais direta, quase brutal. Hoje, mantenho a mesma intensidade, mas com camadas mais refinadas de técnica e significado. O uso do acrílico em camadas transparentes, por exemplo, trouxe uma nova profundidade às minhas pinturas. Uma fase marcante foi a série “Apenas Pênis”, onde explorei a masculinidade sob diferentes óticas, e mais recentemente, a instalação das Estações da Via Sacra — um projeto que uniu espiritualidade, escultura e crítica social.
Futuro da Arte: Quais são suas perspectivas sobre o futuro da arte contemporânea, especialmente no que diz respeito à representação de minorias e temas sociais?
Vejo a arte contemporânea caminhando para uma era de maior diversidade e inclusão. A representação de minorias e temas sociais deixou de ser um nicho e passou a ser central. Mas ainda há um longo caminho a percorrer. É necessário que os espaços de poder na arte se tornem mais acessíveis e representativos. A arte do futuro precisa dialogar com a realidade, incomodar, provocar e transformar.
Conselhos para Novos Artistas: Que conselhos você daria para jovens artistas que desejam abordar temas sociais e culturais em suas obras?
Seja honesto com sua arte. Não tente agradar ao mercado ou seguir tendências — isso é passageiro. O que permanece é a verdade do seu trabalho. Aborde os temas que te movem, mesmo que sejam difíceis ou polêmicos. E, acima de tudo, resista. O caminho é árduo, mas a arte tem o poder de mudar vidas — inclusive a sua.
Projetos Atuais e Futuros: Poderia compartilhar conosco sobre seus projetos atuais e o que podemos esperar de você no futuro próximo?
Atualmente, estou participando da exposição Made in NY 2025 no Schweinfurth Art Center, em Nova York, e em breve lançarei um livro chamado “Book of Nephilim”, um projeto fotográfico que desenvolvi com o modelo Chuck Klein, que é um dos meus modelos exclusivos. Também fui selecionado para a exposição Art of New York no Arkell Museum. Paralelamente, continuo como editor da revista Carpazine, divulgando artistas que atuam fora do mainstream. E claro, sigo produzindo novas pinturas e esculturas que abordam juventude, inclusão, resistência e afeto — pilares do meu trabalho.
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Fernando Carpaneda www.carpaneda.com
Carpazine Magazine www.carpazine.com
Entrevista fantástica, um artista brasiliense que conquistou o mundo representando não só a cultura punk, também a cultura LGBTQI+ e o universo underground.
Um artista completo.
Obrigado!